Após o Horizonte
Capítulo X - Familia
Hoje...
Era inútil... não estava adiantando nada...
A água fria caía em minhas mãos, mas o resultado não era bem o esperado. Normalmente o ritual de me fechar no banheiro, respirar fundo, lavar as mãos e o rosto me fazia relaxar, mas hoje... creio que apenas um calmante, um típico sossega leão, faria eu me acalmar.
Talvez a certeza de que há pessoas lá fora que esperam ansiosamente por minha volta, não permita que minha cabeça desligue. Mas não, não é só isso, já que qualquer coisa nova, qualquer lugar diferente, qualquer mudança de rotina, me traz a mesma sensação de estar sendo observada, e por mais que isso tenha se tornado frequente, ainda não consegui diminuir o incômodo intrínseco.
Normalmente evito me olhar no espelho... as vezes não acredito em tudo que aconteceu... as vezes penso estar vivendo fora da realidade ou até mesmo, que tudo isso é apenas um sonho do qual não acordei.
- Alice! Vai demorar? - foi o grito que ouvi lá de fora.
- Já vou! - foi minha resposta no mesmo tom e altura.
Sei que preciso voltar até eles, mas o fato de não saber o que me espera é angustiante. Não posso fugir, mas gostaria de ser poupada de tudo isso... mas... talvez se eu pudesse me olhar no espelho sem pensar, sem lembrar de que a contagem regressiva está correndo, talvez... talvez eu ficasse mais tranquila.
No fim, por mais que tenha desviado os olhos, não foi possível evitar... ao me encarar no espelho por um segundo, uma voz na minha cabeça repetiu o destino em forma de uma sentença inevitável. "Seis meses".
- Seis meses... - balbuciei bem baixinho.
Não posso esquecer que prometi pra mim mesma que não falaria ou pensaria nisso hoje... hoje não... hoje... minhas obrigações deveriam ser cumpridas a risca, nada podia dar errado.
E com essa convicção, respirei fundo novamente, abri a porta e me preparei para dar o primeiro passo em direção a quem me aguardava... e em questão de segundos, todos os olhos do ambiente fizeram questão de se fixar em mim, como se esperassem pela minha próxima ação ou palavra.
Há seis meses...
Não sei quanto tempo fiquei desmaiada, mas não pode ter sido muito... e eu voltei a si, tão repentinamente quanto tinha apagado.
- BRI!!! - gritei, assim que abri os olhos - BRI! CADÊ VOCÊ?! - insisti, me levantando e correndo em direção a porta, imaginando se ainda poderia alcança-la.
- Ali... - foi o que ouvi baixinho atrás de mim, de dentro do banheiro, para onde olhei imediatamente.
- Ali... eu... estava molhando uma toalha para colocar na sua testa... imaginei que ajudaria a te acordar - concluiu ela, saindo do banheiro.
Que alívio senti neste instante! Por um momento pensei que ela poderia ter saído, ido pra praia para... não, não quero pensar... nesta hora, não aguentei e corri em sua direção para abraça-la.
- Sua... louca... desgraçada... como pode... pensar em fazer isso? - falei já abraçada, quase gritando e começando a chorar.
- Ali... eu...
- Desgraçada... sem se despedir... sair da minha vida... sem me explicar... desgraçada... maldita - eu repetia sem parar de chorar, ao mesmo tempo abraçada e socando a parede ao lado dela. Creio que foi isso que evitou que a pegasse pelo pescoço.
- Ali... me desculpe - foi a resposta, também começando a chorar - O medo, a angústia e a solidão foram repentinos e assustadores... por favor... me perdoe.
Após ouvir isso não consegui falar mais nada, somente a puxei até a cama, a deitei e a abracei com força. Minhas lágrimas não paravam e certamente este não era o momento ideal para argumentar qualquer coisa. Precisávamos conversar, mas mesmo isso seria adiado mais um pouco, pois assim que me senti melhor, comecei a beija-la sem dizer nenhuma palavra.
E com isso, a hora seguinte foi diferente de tudo até então. Parece que fazer sexo com ela sentindo-a como uma mulher normal, associada a sensação de quase perda, havia feito aflorar em meu peito sentimentos muito mais profundos. Aparentemente, ao mesmo tempo em que nossa relação diminuiu em intensidade, aumentou consideravelmente em amor.
Creio que se eu parasse para pensar um instante em tudo que me aconteceu desde que começaram estas benditas férias, neste momento eu estaria deitada em um quarto acolchoado, usando uma camisa de força, gritando e babando.
Mas não podia me dar a este luxo, afinal, estava deitada com uma ex-deusa que pensava em se matar para fugir desta porcaria de mundo que chamo de lar. E eu teria que convence-la que valia a pena ficar por aqui... comigo.
Para isso, gastei mais algumas horas em silêncio... comendo um pouco, dando água para ela, a beijando... tudo isso sem falar qualquer palavra, já que em meu interior, minha cabeça tentava criar uma linha de raciocínio que fosse lógica e irrefutável. Meus anos como auditora me ensinaram a procurar minúcias, detalhes e nuances imperceptíveis para a maioria das pessoas, e agora, era este talento que poderia dar um novo rumo para minha vida.
- Viu meu amor? Eu não disse que nada tinha mudado? Nosso amor é inabalável - comentei finalmente, quando me senti pronta para falar, enquanto passava o nariz e boca no seu rosto.
- Fico feliz Ali... mas... isso não muda o fato de que sou uma estranha em seu mundo... e que eu não existo... e que o tempo em que eu passaria aqui me tornaria totalmente dependente de você... e isso além de não ser justo, não me agrada - respondeu ela de forma melancólica.
- Sim, mas... eu refleti muito e posso dizer que você não tem nada a perder em continuar aqui... afinal, o que são algumas décadas para você, que existe há milhares de anos? - falei tentando ser convincente.
- Milhões, na realidade.
- Tá, que seja - concordei com um novo susto. Era incrível como ela ainda me surpreendia quando falava com tanta tranquilidade sobre algo tão... assustador.
- Mas é tão estranho Ali, a necessidade física é um tormento... precisei comer, beber água e fiquei tão envergonhada quando você teve que... que... me ensinar a... a... o que eu tive que fazer mesmo?
- Xixi - respondi, constrangida.
- Viu? Não pode ter nada pior para um ser humano do que fazer... xixi... que coisa mais horrível.
- Então... na verdade... existem coisas muito piores, mas tudo a seu tempo, ok? Agora precisamos falar sobre você e sobre nossa vida.
- Estou ouvindo Ali, mas ainda acho mais fácil, simplesmente voltar para meu povo.
- Lógico que é mais fácil, CARALHO! - gritei angustiada - Viver não é fácil, mas me deixa falar... por favor!
- Tudo bem, vou ouvir... desculpe - respondeu ela, com tristeza.
- Bri... você já veio para meu mundo dezenas de vezes... aproveitou, descobriu, sentiu e no final, voltava para seu local e esquecia tudo, correto? Você disse que seria purificada das emoções e sensações.
- Sim, é isso mesmo.
- Me diz uma coisa. Qual foi o tempo máximo que alguém do seu povo ficou aqui? Tanto com o corpo que você tinha quando te conheci, como com o corpo que você tem hoje?
- Na nossa forma normal, alguns anos... nesse corpo físico, bem pouco tempo na realidade. Ninguém do meu povo aguentou ficar neste corpo por mais que um dia ou dois... e eu tinha medo de descobrir o porquê. Agora eu sei... fome, sede, medo, fazer xixi... isso tudo é horrível, como vocês aguentam?
- Não temos escolha, não é? Diferente de vocês "deuses" - respondi ironicamente.
- Desculpe Ali, não quis lhe ofender. Mas por favor, onde quer chegar?
- Bom, você tem uma chance única de entender como realmente é a vida que nós mortais temos... talvez o que falte a seu povo é uma compreensão profunda sobre tudo que somos e tudo pelo que passamos. Você terá uma experiência única e mais conhecimento sobre nós do que qualquer um de seu povo.
- Sim, tem razão... mas eu nem imagino como começar.
- Este é o ponto. Os outros que tentaram não tiveram qualquer apoio, estavam sozinhos e não sabiam o que fazer. Eles não tinham alguém disposto a ensina-los a viver entre os humanos, coisa que você tem.
- Mas, vai te incomodar...
- Claro que vai, mas apenas a princípio. A medida que você aprender a viver, poderá tomar suas próprias decisões, descobrir o que gosta de fazer, trabalhar em alguma coisa, ganhar seu dinheiro... enfim, viver... ao mesmo tempo em que me faz companhia e me deixa feliz por você estar aqui. Bri, você sabe que pode voltar a qualquer momento, a única coisa que lhe peço é uma chance de ser quem você precisa, ser sua família... um ano, talvez... se em um ano você achar que não vale a pena, terá todo meu apoio para ir embora.
Ela silenciou e ficou assim por alguns minutos. Obviamente estava refletindo sobre tudo o que falei, então não devia apressa-la. E após uns dez minutos, ela disse finalmente:
- Sim, o que você disse faz todo o sentido... se você realmente se dispõe a me ajudar, o que é um ano? Será difícil, doloroso, mas talvez eu aprenda mais neste único ano do que em todos os milhares que meu povo observa o seu.
- Então... e neste ano, eu serei sua família e farei tudo para você - comentei com alegria e alivio - Vou te levar pra minha casa, te ensinar tudo o que precisa saber, vou te proteger, alimentar e te deixar confortável. É só isso que te peço, uma chance.
- Mas eu não entendo Ali, por que está fazendo tudo isso por mim? Agora sou apenas uma humana, que não pode mais...
- Quer calar essa boca? - interrompi ela com raiva - Você não é apenas uma humana, você é a pessoa que eu amo... a pessoa que conquistou meu coração e que agora, eu não quero mais viver sem. Eu te amo! Você não entende?
- Eu... não sei se entendo... não sou mais empata... não posso refletir seus sentimentos... e as únicas coisas que sinto agora são angústia e medo... eu não sei o que é amar - respondeu ela com toda sinceridade.
- Então esta é mais uma coisa que irei te ensinar. Claro que neste quesito sou uma péssima professora, mas prometo dar o meu melhor - respondi, também bem sincera.
Senti os braços dela me apertando ao mesmo tempo em que seu corpo se encolhia um pouco. Parece que finalmente ela havia relaxado, e por isso voltei aos argumentos sobre sua permanência.
- Então minha linda, você só tem a ganhar ficando aqui comigo... eu prometo te amar, cuidar de você, garantir que não lhe falte nada... em troca, só peço que você permita que eu faça isso, por pelo menos um ano.
- Sim, eu permito... engraçado, não consigo imaginar te negar algo, o que pode ser isso?
- Vou deixar você descobrir sozinha - foi minha resposta, com outro abraço.
- Ali, só fiquei com uma dúvida, você disse que havia algo pior que fazer xixi. Do que se trata?
- Na hora certa você vai saber - foi minha resposta, um tanto constrangida.
- Tudo bem Ali, eu aceito ficar com você por este tempo, mas por favor tenha paciência.
- Eu terei... mas que estranho, assim de repente, sinto que tem alguém me observando.
- E tem mesmo... creio que meu povo ficou bem curioso para saber como será minha vida como mortal... eles provavelmente não esperavam que eu realmente ficaria aqui, então se acostume.
- Isso é o de menos, mesmo porque sendo você humana, teremos muitas coisas pra fazer.
- O que por exemplo?
- Depois a gente pensa... mas agora, só quero te beijar de novo meu amor - comentei a agarrando rapidamente.
Eu sei que fazer sexo não é tudo na vida, mas por mim, ficaria um mês inteiro com ela, só parando para comer, beber, dormir e ir ao banheiro... realmente estava viciada na minha querida, normal e não mais sobrenatural Brigit... e espero que essa deliciosa sensação não mude nunca.
Engraçado, no fim eu sairei daqui casada? Acabei de me lembrar do sujeito que vendeu o pacote de férias... que disse que a última pessoa que veio pra cá dizendo a mesma coisa que eu, voltou casada... não sei se volto lá para agradecer ou para lhe dar uns tapas.
Hoje...
Queria tanto que hoje fosse um monótono domingo normal, mas feliz ou infelizmente, as circunstâncias eram completamente inesperadas para todos os envolvidos, e só espero que eu não me arrependa de ter aceitado isso.
- Finamente Alice, a comida está esfriando - disse minha mãe, em um tom pouco amigável.
- Estava lavando as mãos, mãe! - me justifiquei enquanto sentava à mesa. Já meu pai e a Bri não abriram a boca.
- Coma mais querida, por favor pegue a vontade...
- Agradeço senhora mãe da Alice, mas meu prato ainda está cheio.
- Ruth, meu amor, me chame de Ruth... e sem cerimônia, tem que comer mesmo - disse minha mãe, colocando outro bife gigante no prato da Bri.
- Mãe! Ela não vai aguentar comer tudo isso - falei sem poder fazer nada.
- Vai sim! Ela é magrinha, precisa ganhar um pouco mais de corpo e peito... imagina como ela vai ficar linda com uns kilos a mais.
- Mãe!
- Tudo bem, Ali! Eu como devagar e aguento sim... a comida está uma delícia senhora mãe da Alice.
- Obrigada querida! Mas você pode me chamar de Ruth.
- Desculpe, é que eu acho "mãe" uma palavra tão linda.
- Tudo bem meu amor. Mas, onde está sua mãe?
- Eu não tenho mãe, nem pai e nem ninguém... sabe, a Alice é minha única família.
- Brigit! Não fala isso, senão... - interrompi ela, mas no instante seguinte, notei ser tarde demais.
- Como é? Tadinha... então pode me chamar de mãe sim, eu vou adorar ter uma nova filha linda e educada como você. Agora sua família vai ser bem maior, viu?
- Fico feliz, muito obrigada... mãe.
- Mãe, não abusa.
- Quieta! - retrucou minha mãe, me olhando de forma bem séria - Escuta bem, senhorita Alice de Carvalho Mendes, se ousar, se sonhar em magoar esta triste e linda menina, eu acabo com você, entendeu?
- Ela não me magoa, mãe, ela me ama - respondeu Bri com a boca cheia.
- E espero que este "amor" dure mais que uma semana, ouviu senhorita Alice de Carvalho Mendes? – foi a resposta dela com o dedo em riste.
- Pode deixar mãe - respondi resignada.
Bom, o que eu podia esperar? Quando contei para meus pais que finalmente havia encontrado o amor da minha vida, primeiro eles riram... depois ironizaram... quando insisti, fizeram um bolão de quanto tempo eu ficaria com ela. E ontem, após seis meses, um recorde inacreditável segundo minha mãe, ela ordenou que eu trouxesse para o almoço a "coitada que eu estava iludindo desta vez".
Mas pela reação da Dona Ruth, acredito que ela está muito feliz com a possibilidade de sua filha finalmente ter encontrado alguém. E considerando os últimos meses, eu realmente estou mais feliz do que um dia imaginei ser possível.
Emprego novo em uma empresa tranquila, sem aquela loucura e pressão por resultados... uma namorada que descobriu que adora fotografar... finalmente estou morando com alguém que amo... e o principal, a Bri praticamente não precisa mais da minha ajuda no dia a dia. Na realidade nossas únicas discussões são quando a questiono se ela vai mesmo embora após o ano que combinamos... e ela não responde, o que me deixa louca da vida.
- Mas não se empolga, dona Ruth. Talvez daqui a seis meses, a Bri volte para... a Irlanda em definitivo, e eu tornarei a ficar sozinha - soltei sem querer, pois não parava de pensar nisso.
Minha mãe não respondeu de imediato, apenas olhou para a Bri, recebeu um sorriso de volta e se voltou para mim dizendo:
- Bom, bem que você mereceria ser abandonada após magoar tanta gente, mas eu não acredito, essa menina te ama e não vai te deixar.
- Se você está dizendo - respondi, tentando acreditar nisso. Mas quando olhei para a Bri, ela não sorria mais, simplesmente havia voltado sua atenção para o prato a toda velocidade.
Deixa pra lá, melhor falar sobre isso sozinha com ela... mas engraçado, normalmente meu pai fala tanto e hoje ele está tão quieto. Por que será?
- Minha filha, queria te perguntar uma coisa - disse ele finalmente, olhando para a Bri que não parava de comer um segundo.
- Sim, senhor pai da Alice? - respondeu ela, logo após engolir.
- Meu sonho é ter um neto, mas essa minha filha desnaturada nem quer saber disso. Você já pensou em ter um filho?
- PAI!!!!!!!! - quase gritei, desconcertada.
- Calma Ali, ele perguntou pra mim... sim, já pensei diversas vezes, mas nunca falei com a Ali sobre...
- BRI!!!!! Fica quietinha e continua comendo, tá?
- Foi só uma pergunta, filha...
- Tá bom, mas por hora vamos mudar de assunto?
- Ali... já imaginou alguma vez eu sendo mãe? - disse ela me encarando com os olhos quase brilhando.
Pronto, após um longo suspiro, comecei a me arrepender... acho que este almoço vai render muita conversa depois.
Mas o que posso fazer? Eu amo esta garota e é minha responsabilidade cuidar dela... por hora, só posso aproveitar a felicidade que ela me proporciona, torcendo para que este conto de fadas maluco e improvável que virou minha vida não termine nunca.
- Ali, se eu quiser ser mãe, você deixa?
É, realmente um conto de fadas... maluco e improvável.
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