Minha gatinha havia fugido de casa e a culpa me consumiu naquele domingo... eu que a levei ao Shopping, falei para entrar na loja e o pior, não a apoiei o necessário naquela noite... eu devia ter lhe dito que nada tinha mudado, que a amava, que só isso importava... devia ter ficado a noite todo falando no seu ouvido que a amava... mas fiquei sem ação, achei que podia falar no dia seguinte... e no dia seguinte, foi tarde demais.
Não sei quanto tempo chorei, olhando para o cantinho do sofá onde ela dormiu na primeira noite... fiquei imaginando se ela iria comer direitinho... se ela estava bem ou chorando também... só sei que foi muito tempo... até que, quando as lágrimas acabaram fui cambaleando até a cozinha pegar um pouco de água. E em cima da mesa de jantar, encontrei o meu alento, na forma de uma carta... uma carta que li tantas vezes, que decorei cada palavra...
"Querida Doutora,
Antes de mais nada, obrigada por tudo que você fez por mim nos últimos meses.
Quando te conheci, minha vida estava tão sem sentido, que não sei qual teria sido meu fim se não fosse por seu carinho e proteção.
Por favor, me perdoe por ter exposto você a um problema do meu passado... não foi justo e não conseguirei me perdoar por isso.
Mas pelo menos isso me mostrou que não adiantava fingir que meu passado não existia... por mais que eu tentasse acreditar, minha vida não começou após te conhecer (meu coração pensa assim).
Não posso mais esconder meus problemas não resolvidos, pois eles podem reaparecer e magoar as pessoas que eu amo (você principalmente).
Por isso tomei uma decisão... para conseguir me orgulhar da minha vida a ponto de poder te contar tudo, eu não posso deixar nada em aberto... preciso resolver meus problemas, encará-los... preciso parar de fugir e de ser covarde... preciso ser forte e decidida igual a Doutora... acho que é isso que mais admiro em você, sabia?
Eu preciso resolver três coisas que já deveria ter resolvido... para que você me admire e saiba que não sou mais (graças a você) a covarde que sempre fui. Estava tão cômodo ficar escondida na sua casa no papel de sua gatinha, deixando você fazer tudo... mas não quero ser um fardo para a Doutora, quero ser uma parceira, uma companheira, não um estorvo que só come e pede atenção.
Não se preocupe comigo, irei me cuidar, comer bem, ser forte e corajosa... e sabe por que vou fazer tudo isso?
Porque quando minha vida estiver resolvida, vou voltar para a minha dona (é assim que te vejo) de cabeça erguida, sabendo que ela vai se orgulhar de mim... deve demorar uns dias, vários dias, mas vou voltar para você...
Então por favor me espere... quando eu voltar te conto tudo, prometo... sem segredos ou mentiras... por favor, tente entender... não me odeie por isso, só quero ser digna da minha dona...
É isso... não vou contar tudo agora porque estou com medo que você acorde e tente me impedir... e se eu porventura ver seus olhos marejados ou ouvir sua voz triste, não vou conseguir ir...
Por favor, por favor, por favor me espere...
Eu te amo minha dona!
Lucy (a sua, só sua e sempre sua gatinha)"
E foi somente após ler esta carta umas cinco vezes, que meu coração se tranquilizou um pouco... claro que ainda ficaria preocupada e com saudades... mas ela voltaria pra mim... a esperança não tinha me abandonado, eu teria minha gatinha de volta um dia...
Mesmo assim, os próximos dias foram tristes e tediosos... em cada dia, uma marca no calendário para saber há quanto tempo ela tinha ido... em cada dia, uma preocupação sobre onde e como ela estava... em cada dia, um olhar de compaixão da Pri, que nunca veio falar o quanto me avisou sobre este relacionamento maluco... bom, pelo menos ela tentava não piorar algo que já estava péssimo o suficiente... e ainda, cada detalhe ou local de minha casa era um motivo para sentir saudades de algo que ela fez ou falou... estava sendo muito difícil, mas eu iria esperar.
E passou um dia, dois, três, cinco, dez, quinze, vinte, vinte e cinco, e a saudade apertava... e as preocupações aumentavam... e as noites não terminavam... e o cheiro dela ainda emanava dos meus travesseiros... e a esperança de seu retorno nascia a cada dia apenas para morrer ao fim dele... mas eu esperaria... sabia... não, sentia que ela ia voltar... vinte e seis dias, vinte e sete dias... e este em especial foi uma noite sem fim com choro e muita saudade...
Até que... no dia vinte e oito após a sua ida, um dia triste e tedioso como os outros vinte e sete antes dele, quando eu estava comendo uma bacia lotada de pipoca de micro-ondas como almoço (não tinha ânimo para cozinhar) aconteceu algo novo, neste dia tão igual a todos os outros, ouvi alguém batendo na minha porta. Não que significasse algo, pois às vezes algum vizinho chato vinha pedir alguma coisa. De extrema má vontade, deixei minhas pipocas no sofá e fui ver quem ousava atrapalhar a minha fossa. E ao abrir a porta de uma vez, lá estava ela.
'Oi Doutora... posso entrar?' disse, com um olhar tímido e um sorriso mal disfarçado. 'Lu...cy' balbuciei, dando dois passos para trás, permitindo seu acesso, coisa que ela fez imediatamente, puxando duas malas bem grandes. Em seguida, ela fechou a porta e me olhou aparentemente sem saber o que falar... e eu também não sabia... e assim ficamos um tempo, imóveis, até que tomei a iniciativa, segurando os braços dela e começando a chorar:
'Lucy! Onde... onde você estava? Por que fez isso comigo? Eu... eu... estou sofrendo há quase um mês... um mês sem uma ligação, uma visita ou um bilhete... por quê?' dizia em um tom nervoso e ao mesmo tempo, aliviado. E ela não respondeu. 'Não vai falar nada? Não vai responder? Eu não significo nada para você? Sua egoísta... sua...' disse, cortando a frase para não falar algo que iria fazer eu me arrepender depois. 'Eu contarei tudo, Doutora, mas agora você precisa desabafar... pode me bater, xingar, gritar... não vou reagir pois mereço qualquer coisa que você queira fazer.' foi a resposta, de cabeça baixa.
'Te bater, te xingar ou gritar?! Sua... sua cabeça-oca, a única coisa que quero fazer com você... que queria ter feito no último mês é...' disse, soltando seus braços, para na sequência abraça-la e beija-la de forma apaixonada. E foi assim que passamos as próximas horas, na cama, nos beijando, nos amando e dizendo o quanto estávamos com saudades... claro que ela me contaria e explicaria tudo, mas naquele momento, eu não estava preocupada com isso... minha gatinha havia voltado e só isso importava.
E foi só no início da noite que paramos um pouco, quando puder curtir sua pele e seu cheiro, abraçando-a em conchinha... eu adorava alisar seus braços, suas costas e todo o resto... 'Malvada, podia ter me visitado para ficarmos juntinhas algumas horas... depois você ia resolver sua vida de novo' disse enquanto alisava seu lindo cabelo. 'Se voltasse, não ia conseguir sair de novo... estava morrendo de saudades da minha dona' foi a resposta, alisando meu braço. 'Minha lindinha... pelas malas, vi que você veio para ficar, né?' perguntei sem qualquer rancor... era incrível como aquele mês horrível tinha desvanecido após algumas horas com ela. 'Se a Doutora ainda me quiser' foi a resposta com receio. 'Será que quero? Ou será que vou expulsar minha gatinha na base da vassourada?' foi minha resposta, dando um tapa no traseiro dela. 'Isso só depende do que você vai me contar agora' comentei, para ela responder 'Eu sei'. 'São três coisas que você devia resolver, vamos a elas...' concluí, aguardando o seu relato.
'Sim, três coisas... minha madrasta... minha banda... e a maluca que atacou a gente no shopping... pode não parecer, mas minha vida é bem agitada, Doutora.' disse, ainda me alisando. 'Uau! Minha lindinha tem vários inimigos... comece com a madrasta' respondi, realmente curiosa.
'Ok... minha mãe faleceu de câncer de mama quando tinha apenas três anos... e como meu pai trabalhava muito, ele contratou uma babá em tempo integral... morávamos em Indianópolis, perto daqui, e obviamente para a babá, morar com uma família abastada era uma ótima oportunidade. Ela me tratava como filha e foi questão de tempo para meu pai se apaixonar e casar com ela. E minha infância e adolescência não tiveram nada de excepcional, exceto que me interessei em tocar guitarra e meu pai sempre apoiou. Quando tinha dezessete anos, meu corpo já estava meio definido, então estas roupas que uso hoje foram todas presentes do meu pai entre os dezessete e os dezenove. Ele também fez uma reserva financeira para minha faculdade, pós-graduação, etc. Aí... ele teve câncer no estômago, que o matou muito rápido duas semanas depois que fiz dezenove anos.'
'Sinto muito... tadinha, perdeu os dois tão cedo' comentei, com pena realmente. 'Sim, mas considerava minha madrasta praticamente como minha mãe, ao menos por três meses após a morte de papai, quando ela apareceu com um namorado no apartamento onde morávamos, herança minha e dela que era a esposa. Fiquei muito incomodada, mas não podia fazer nada... até que... uma noite eu estava fazendo uma sopinha no micro-ondas e ele entrou na cozinha bem devagar, chegou por trás de mim e me apalpou... Doutora, eu era desconfiada pelo jeito que ele me olhava, mas... nunca esperava por isso', e ela suspirou profundamente neste momento. 'Eu estendi a mão e peguei a primeira coisa que consegui, uma panela de pressão, e dei na cara dele com tudo... e quebrei seu nariz' disse, sem esconder um sorriso de satisfação.
'Ele foi parar no hospital e minha madrasta disse ter sido um mal entendido, que ele não queria passar a mão em mim... mas ameacei que se ela levasse qualquer cara para o nosso apartamento de novo, iria na polícia dizer que ele tinha me assediado e ela era conivente. Ela não levou mais ninguém mas nosso relacionamento foi só ladeira abaixo depois dessa'. 'Nossa... não dá pra brincar com você' comentei, imaginando o cara com o nariz afundado. 'Quando fiz vinte e um anos, ela me disse que não tinha mais qualquer obrigação legal e que não iria sustentar uma vagabunda que só queria saber de tocar guitarra e não trabalhava e nem estudava... isso tem a ver com a banda que eu tinha formado... ela não podia me impedir de entrar no apartamento, mas podia me proibir de comer a comida que ela comprava... e a partir daí, eu que me virasse para comer, este foi meu presente de aniversário'. 'Bom, isso já explica muita coisa' comentei, finalmente entendendo a fome que ela passava.
'E para completar, ela me disse que se passasse mais de um dia fora de casa, ela ia jogar todas as minhas roupas pela janela, pois se era para eu sair de casa, era para sair de vez'. 'Por isso você voltava para lá todas as manhãs...' comentei, matando mais uma questão. 'Sim, até que dormi com você e pensei que se ela realmente me expulsasse, teria onde ficar e me acomodei junto a Doutora... era tão bom, para que voltar lá? É só isso... e agora o problema dois'. 'Ansiosa, minha gatinha' respondi, a abraçando mais ainda.
'Já tocava e cantava desde meus quatorze anos, mas sempre o estudo veio em primeiro lugar... com dezenove eu estava no segundo ano de Artes Plásticas na USP e após a morte de papai, tranquei a matrícula para me dedicar a meu maior sonho, formar uma banda. E com um guitarrista, uma baixista e um baterista, todos da faculdade, formamos um quarteto que tocava em festas, alguns bares e principalmente para os colegas... e estava levando a sério, queria crescer com a música... mas precisava de dinheiro, para os instrumentos, aluguel de um estúdio, audições, publicidade e um monte de coisas... e o único dinheiro disponível de todos nós, era o fundo de reserva que papai montou'. 'Ihhhh, já farejei o problema...' comentei, só esperando para confirmar meu pensamento.
'É tão óbvio assim? Modéstia a parte, eu era a melhor guitarrista e ainda bancava tudo, então ninguém questionava eu ser a principal. Mas quando finalmente achamos um produtor, o desgraçado do outro guitarrista convenceu a banda que me manter como principal seria um problema, porque meu gênio era de uma mimada metida e instável... e eles assinaram o contrato sem mim... de um dia para o outro, eles foram embora e me deixaram sozinha e sem dinheiro, pois gastei tudo que tinha na banda'. 'Nossa, Lucy... que sacanagem' comentei, sem acreditar em tanta ingenuidade. 'Por isso quando a madrasta má cortou minha comida, eu não tinha mais dinheiro para viver... e nem trabalho, pois fiquei meia deprimida de ser passada pra trás. E essa junção de porcarias, me levou ao problema três, aquela maluca'. Neste momento, Lucy se virou pra mim e com os olhos marejados balbuciou: 'Doutora, promete que não vai pensar mal de mim quando eu contar isso? Promete que não vai achar que sou uma puta ou algo parecido?'. 'Claro que não... pode ficar sossegada, eu sei bem o que você é' respondi, para tranquiliza-la, mas não nego que fiquei um pouco receosa.
'Obrigada' foi a resposta, se virando de novo, ao mesmo tempo em que aproveitava para beijar a nuca macia e cheirosa dela. 'Estava sem amigos, sem dinheiro, sem vontade de fazer nada e sem comida. Mas precisava comer, então comecei a frequentar os bares e boates de Moema toda noite, procurando bicos como receber os clientes, servir as mesas ou mesmo tocar um pouco. Alguns pagavam pelo meu trabalho e ficava bem por alguns dias, outros me davam apenas comida, mas que escolha tinha? Até que em uma noite, em um bar de MPB, estava oferecendo meu trabalho para o gerente e aquela mulher ouviu... ela me chamou para sua mesa, falou que ficou com dó, pediu umas comidinhas e a boba aqui aceitou feliz, imaginando ter encontrado uma pessoa boa. Aí no final da noite, saí do bar com ela meia bêbada e no meio da rua ela começou a me agarrar... eu não queria, comecei a chorar e ela disse que eu era uma trouxa... e disse que... que... me daria mil reais se passasse a noite com ela... eu ganhava quarenta, cinquenta por noite com muito esforço... imagina uma promessa de mil reais, Doutora' nesse momento Lucy estava chorando e eu não sabia o que pensar.
'Eu fui... e foi a noite mais nojenta da minha vida... me senti suja, usada como um pedaço de carne... ela me machucou, parecia que tinha prazer em causar dor... foi horrível... De manhã ela pagou e prometi pra mim mesma que nunca mais faria isso, que era melhor passar fome'. Lucy deu outro longo suspiro e eu... eu estava sentindo uma angústia terrível por ela. 'E foi o que começou a acontecer, depois que o dinheiro acabou. Fiquei mais deprimida e as vezes não comia nada o dia todo e conseguia algo a noite... as vezes nada a noite também e vasculhava o lixo das padarias para conseguir uns pães velhos... pedia ajuda para algumas pessoas, mas todas só queriam... me comer... e eu fugia quando notava o olhar com segundas intenções... procurei uns empregos, mas não tinha qualquer qualificação, então só podia tentar continuar tocando... e quando finalmente consegui um bar para tocar, achei que minha vida tinha tomado um rumo.' Lucy enxugou as lágrimas e respirou fundo antes de continuar.
'Neste bar eu tocava quase toda noite, até que a maluca me achou lá... e no fim da minha apresentação, veio falar que queria passar a noite comigo de novo e pagava mais mil... recusei... e no dia seguinte fui demitida... depois descobri por uma amiga de lá que a desgraçada disse para o dono que eu me drogava e roubava os locais onde trabalhava... ela fez isso para me obrigar a aceitar o dinheiro dela... você acredita, Doutora?' 'Não...' comentei, inconformada com o nível de doença de algumas pessoas. 'Mas não aceitei, e voltei aos bicos... na noite em que nos encontramos, não tinha comido nada o dia todo... meu estômago doía e estava tonta, por isso parei na esquina... e você me acertou'. 'Tadinha... realmente você já estourou sua quota de pessoas ruins, Lucy' comentei com meu coração cortado.
'Em compensação achei você Doutora, na verdade você me achou... e após te conhecer, tudo mudou... você me acolheu, me protegeu e nunca pediu nada em troca... você me viu como uma pessoa que precisava de ajuda, igual no dia em que me deu dinheiro e só exigiu que eu almoçasse... parecia que você era tão sozinha quanto eu e me tratava tão bem... e eu adorava quando você me chamava de gatinha, era tão carinhoso... e você me acariciava, me deixava dormir no seu colo... e não consegui evitar, me apaixonei totalmente... mas tinha vergonha de admitir que sonhava em te tocar, te beijar e ir pra sua cama... até que você me convidou'. 'Mais ou menos' pensei, lembrando do meu fora naquela noite. 'E tudo que cantei naquela música é verdade, a Doutora é todo o amor que eu preciso.' disse ela com aparente alívio por finalmente colocar isso pra fora. 'Eu também me apaixonei por você, mas nunca te falei... desculpe... foi tão diferente e tinha medo que você fosse embora... o que acabou acontecendo'. comentei com uma ponta de tristeza. 'Mas falta me dizer se resolveu tudo.'.
'Sim... eu procurei o advogado que fez o inventário do meu pai, ele me conhecia desde criança... e contei pra ele tudo que contei pra você agora... ele ficou horrorizado e prometeu me ajudar, e ajudou. Fomos até minha madrasta e disse que não queria mais morar com ela, então tinha que vender o apartamento e dar minha parte... e também ia processa-la por assédio moral por me deixar com fome e ameaçar jogar minhas roupas pela janela... ela se borrou de medo e implorou por um acordo... aí vimos o valor do aluguel do nosso apartamento e ela passou a me pagar a metade, e eu saí de lá de vez... agora tenho uma renda mensal garantida'. 'Muito bom, parabéns!' respondi admirada. 'Já recebi a primeira parcela e separei o dinheiro que a Doutora me emprestou para almoçar, tá tudo anotado e vou te devolver hoje mesmo'. 'Não precisa...' retruquei, 'Precisa sim... só aceitei no dia porque era um empréstimo, lembra?', 'Tá, tem razão...' disse, me rendendo ao argumento.
'Quanto a banda, eu tinha as notas fiscais de tudo que gastei, eram lembranças... aí procuramos o novo guitarrista principal e ameaçamos que se ele não devolvesse meu investimento, íamos processar ele e o produtor por má-fé, estelionato e outras coisas... ele sabia que se o produtor fosse envolvido, ia perder o contrato e aceitou me devolver em doze parcelas... já recebi a primeira também', 'Nossa, gatinha esperta!' comentei realmente admirada.
'E a maluca, fomos até o apartamento dela... eu disse que minha amiga e o dono do bar aceitavam ser testemunhas de um processo por injúria contra ela... e fiz um B.O. pela agressão no Shopping... ela chorou e implorou para eu não fazer isso e prometeu nunca mais nem chegar perto de mim. Agora estou armada contra a maluca, se ela pensar em se aproximar, vai se entender com a polícia' finalizou ela, com um suspiro de alívio.
E eu estava refletindo... que história, como aquela menina já tinha sofrido, nas mãos da madrasta, dos amigos, de uma maluca psicopata... eu a encontrei totalmente desnorteada e sem querer, a influenciei para seguir com a vida. Isso me deixou muito feliz, mas faltava o principal... e agora?
'Lucy, fico muito feliz que você se arrumou, recuperou seu dinheiro e vai ter uma renda... mas o que vai fazer agora? Quais são seus planos para o futuro?' perguntei realmente interessada. 'Bom, se a Doutora deixar eu ficar aqui, vou ajudar com as despesas, se não, vou alugar um apartamento pequeno... mas queria continuar te vendo, pois eu te amo de verdade... também vou retomar minha faculdade e tentar montar uma nova banda para carreira solo... vou contratar os músicos, e quem sabe com o tempo, chegarei em algum lugar. Só isso. O que a Doutora acha?' foi a resposta, se virando pra mim e olhando nos meus olhos.
Fui pega de surpresa... eu queria dizer apenas que a amava também, que minha casa e meu coração eram todos dela, mas o maldito racional estava me incomodando: 'Lucy, eu não sei... você é tão novinha, tem tanto pelo que lutar ainda... e eu sou tão mais velha que você... me pergunto se nessa vida nova, você não vai achar alguém da sua idade, que queira lutar ao seu lado... não sei se sou a pessoa certa pra você'. Lucy suspirou e perguntou olhando dentro dos meus olhos: 'Doutora, você tem dúvidas sobre os seus sentimentos... ou tem dúvidas sobre os meus? Por favor, eu preciso saber'.
Esta pergunta me atravessou como uma espada... eu não tinha qualquer dúvida, mas como falar que na realidade, estava com medo dela? Como explicar que eu não queria passar de novo por este mês que ela ficou longe? Bom, era hora das máscaras caírem, então respondi: 'Lucy, eu te amo... eu queria muito que você morasse aqui comigo, mas... você é novinha demais, quem garante que daqui a seis meses, um ano, você não vai encontrar outra pessoa que fará seu coração balançar? Eu não quero sofrer de novo... talvez seja melhor cada uma levar sua vida e quando der, nos vemos... e vai durar o tempo que tiver que durar'.
Lucy suspirou de novo e demorou alguns segundos para responder: 'Você tem dúvidas sobre os meus sentimentos... mas eu te amo tanto, Doutora... até comprei uma coisa pra gente' disse ela, com o olhar triste. 'Comprou o que?' perguntei com curiosidade. 'Minuto' disse ela se levantando e indo até a sala, para pegar algo na mala. Ela voltou rápido com uma coisinha roxa pequena, parecida com uma caixinha que guarda jóias... em seguida deitou de novo e abriu na minha frente.
'Olha, eu peguei a primeira parcela do reembolso e comprei estas jóias pra gente... uma pulseirinha e uma gargantilha, as duas de ouro com um pingente de meio coração. A minha dona usa a pulseira e sua gatinha usa essa gargantilha como uma coleira... não é legal?' disse ela sorrindo.
Achei curiosa a palavra "Coleira", mas por ser bonitinho dei corda: 'Mas o que significa?'. 'Olha, sua gatinha tá sempre com metade do coração e a outra metade fica com a dona... aí a gatinha sempre deve voltar para perto da dona, se não o coração dela fica partido e triste... o coração da gatinha só vai ficar completo quando estiver perto, brincando ou te amando... e pra completar é a minha dona que vai colocar essa coleira em mim... assim oficialmente tomará posse da sua gatinha Lucy'.
Sinceramente, fiquei sem ação ou palavras... quando finalmente eu estava sendo racional e levava nosso relacionamento para um ponto de equilíbrio seguro e tranquilo... esta miserável espertinha vem com uma destas... como eu poderia retrucar ou resistir? Praticamente derrotada, eu comentei com um sorriso:
'Não adianta... você é única mesmo... não existe outra gatinha no mundo que foge de casa e quando volta, traz a própria coleira... e ainda pede para a dona colocar... não adianta, sabia? Eu te amo, Lucy'. Ela me abraçou e alguns segundos antes de um beijo delicioso e apaixonado, respondeu 'Também te amo, Cristy'. E essa última frase derreteu meu coração de vez... foi a primeira vez que ela me chamou pelo nome e ainda ganhei um apelido carinhoso.
'Cristy?' perguntei durante um intervalo dos beijos. 'É bom que goste Doutora, foram vários dias para pensar em um apelido só nosso' respondeu ela sorrindo um segundo antes de voltar a me beijar. 'Você não achou que eu ia te chamar de Cris, igual aquela cadela abusada da "Pri", não é?' disse no intervalo seguinte, me deixando pasma por ela ainda se lembrar daquela brincadeira. 'Lucy... cala essa boca! Me beija!' foi a minha resposta em um tom autoritário. E como sempre, ela me obedeceu e não falamos mais nada pelo resto da noite... acho incrível como ela fica extremamente excitada quando eu dou uma ordem... e com sua "versão tarada" no controle (ou fora de controle) falar era realmente desnecessário.
E esta foi a nossa história... de como uma médica feliz e satisfeita profissionalmente, mas infeliz e sozinha na vida pessoal, encontrou por acaso uma linda e talentosa guitarrista, que estava deprimida, com fome e sem rumo... e de como a abrigou, alimentou, passou a confiar nela e lhe deu acesso a seus territórios mais íntimos... e de como ela jantou, dormiu, se alisou e invadiu sua cama e seu coração.
E agora após terminar este relato e relembrar tudo em detalhes, só uma conclusão se apresenta... DANE-SE O FUTURO, dane-se o que pode acontecer amanhã, semana que vem ou ano que vem... o que importa é o hoje, e hoje eu a amo... sim, não posso e não vou negar... eu amo a Lucy... e sinto no fundo do meu coração duas coisas... que o que começou sem querer graças a uma chuva, uma trombada e uma saída atrasada do trabalho, é tudo o que eu poderia querer na minha vida... e que esta linda e louca história de amor que agora compartilhamos, está apenas começando.
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