domingo, 25 de abril de 2021

Após o Horizonte Capítulo VI - Deusa


Após o Horizonte
Capítulo  VI - Deusa


Pronto, não faltava mais nada... além de tudo, agora estou delirando, de tanto querer ouvir a voz da Brigit, pensei ter ouvido ela aqui dentro do meu quar...

- Olá, criança.

Prendi a respiração e travei, pois um delírio auditivo até podia ser, mas dois... com o coração acelerando, virei a cabeça bem devagar para a esquerda da cama, origem do som e a vi, de pé, com a mesma roupa, bem do meu lado... no tempo de uma piscada, enquanto enchia o pulmão de ar para gritar o mais alto possível diante daquela aparição, ela já estava sentada na cama, tampando minha boca.

- Não grite, por favor, não vou te ferir, confie em mim - disse com aquela voz que tanto sonhei em ouvir e na minha boca, estava aquela mão tão macia e quente da qual me lembrava tão bem. Ainda estava assustada e com os olhos arregalados, mas não haviam dúvidas, era a Brigit, a garota que preencheu meus pensamentos nos últimos dez dias.

- Você entendeu? Não grite - pediu novamente. Concordei com a cabeça, o que a fez me soltar imediatamente.

- É você... mesma? - perguntei, pegando em sua mão e alisando-a no rosto.

- Sim.

Não resisti e me joguei pra frente, abraçando-a com força, apesar de que este movimento fez meu corpo todo doer.

- Por que me deixou lá? O que houve comigo? Por que... eu não paro de pensar em você? Como você chegou aqui? - perguntei rapidamente enquanto tentava não chorar.

- Calma criança, vou te explicar tudo... por isso voltei, calma - foi a resposta, retribuindo meu abraço. Mas não me preocupava mais, só o fato de abraça-la, de poder sentir aquele calor novamente já me deixou tão bem, que nada mais importava. E foi assim que ficamos por uns dez minutos, até que meu coração se acalmou.

- Como me achou? - questionei ainda abraçada.

- Eu te disse que toda a troca de energia que tivemos em seu processo de cura, havia nos vinculado. Isso me permite te encontrar em qualquer lugar.

- Vai começar a falar um monte de coisas sem sentido de novo? - perguntei nervosa.

- Não, creio que é melhor demonstrar. Eu sinto... você, seu corpo todo está sofrendo com dor,  vamos resolver isso - foi a resposta, me abraçando mais forte ao mesmo tempo em que ficava mais quente. Não sabia o que estava acontecendo, mas senti aquele mesmo formigamento da praia e não conseguia mais me mexer. Brigit me deitou delicadamente e ficou ao meu lado, com o braço em cima de meu corpo.

- O que está fazendo?

- Quieta! - foi a resposta, que não consegui mais retrucar. E após alguns minutos, Brigit se levantou e sentou-se na cama... e sem entender por qual motivo, também me levantei apenas para notar realmente assustada, que toda a dor havia desaparecido, e em seguida uma lembrança suprimida e ilógica retornou com força total.

- Eu... eu... eu... ti-tinha ra-razão – gaguejei - Eu... me machuquei nas pedras, me arrebentei... mas você me tirou do mar... e me curou... igual agora... eu... tinha razão - falava sem acreditar.

- Sim, você quebrou muitas coisas, o punho, costelas, ombro, dentes e também cortou as pernas, cabeça, costas... foi bem desgastante e demorado curar você.

E minha mente estava alternando entre a incredulidade e a evidência do que tinha acabado de acontecer. Isso foi extremamente assustador, mas o que eu não imaginava era que ainda iria piorar, mas piorar MUITO.

- Falta uma lembrança - disse ela, tocando levemente em minha testa com o dedo indicador, antes que eu pudesse sequer reagir.

E a última lembrança emergiu de uma vez. Lembrei do nosso beijo... lembrei da agonia e desespero de ficar sem ar, lembrei da sensação louca e sufocante. E o mais terrível de tudo, lembrei da satisfação em seus olhos no mesmo instante em que eu morria em seus braços.

Isso foi demais pra minha cabeça... juntar a certeza que esta mulher, não, esta coisa havia me tirado do mar e me curado, apenas para me matar em seguida, fez o pânico tomar conta de meu ser.

- QUEM, NÃO, O QUE É VO-VOCÊ? - perguntei, gritando e saltando da cama, dando em seguida vários passos pra trás.

- Sente-se, não te farei mal, só vim te explicar tudo... por favor, confie em mim.

- Co-confiar? Não acha meio difícil? Agora eu lembro de tudo... você me salvou mas depois tentou me matar... aí acordei na praia sem conseguir me mexer porque você me abandonou lá... e apareceu aqui... e me curou de novo... isso é loucura... não faz sentido... quem é você? O QUE É VOCÊ!? RESPONDA!

- Por favor, não pense que tentei te matar. Eu a avisei que poderia perder o controle e mesmo assim você continuou me provocando. E apenas trocamos energia, muita energia, o que fatalmente sobrecarregou seu corpo. Mas felizmente consegui parar a tempo e me afastar antes que fosse tarde demais, pois eu nunca quis lhe fazer mal.

- Tá... pode ser... m-m-mas... você não respondeu. Q-quem é você? - perguntei, agora tremendo. No meu íntimo, estava rezando para tudo isso ser apenas um sonho, daqueles bem loucos.

- Quem sou realmente, nunca foi relevante aos povos de todos os locais onde já vivi... mas tive inúmeros nomes, dependendo da época.

- Inúmeros n-nomes!? Co-como assim?

- Brigit é apenas um deles, que é como fui chamada na Irlanda, onde os Celtas me veneravam como Brigit da Tríplice Chama... mas no Egito, fui adorada como Isis, a primogênita... entre os Mesopotâmicos, Ishtar, a de muitas amantes, era meu nome... na Grécia, recebi a alcunha de Afrodite, a mais bela de todas... os Vikings me conheciam como Freyja, a mãe dos Vanires... Parvati foi meu nome na Índia, Al-Uzza entre os povos Árabes, no Japão, a que trazia luz... Amaterasu, na China, a suprema Xi Wangmu...

- Vo-você... você... está me dizendo... que é... uma... não, várias... deusas? - a interrompi, tentando continuar me afastando e muito, muito mais assustada agora.

- Não criança, estou apenas dizendo meus nomes... como fui vista e considerada, foi resultado de superstições tolas e intelectos limitados que não podiam conceber outras formas de vida inteligentes e sencientes que não a humana.

- Vo-você... é louca... você... é totalmente louca! - balbuciei, sentindo o medo me dominar. - Sai... SAI DAQUI! ME DEIXA EM PAZ! VAI EMBORA! - gritei, mas sem conseguir mais sair do lugar.

- Calma, criança - disse ela, se levantando da cama que agora estava o mais longe que o quarto permitia.

- NÃO! SAI DAQUI! - gritei, para no segundo seguinte, vê-la parada bem na minha frente, olhando dentro dos meus olhos.

- Se a quisesse morta, você já não estaria respirando. Acalme-se, pois quero te compensar lhe dando um presente, em instantes sua mente visualizará maravilhas que ninguém vê há milhares de anos.

- N-não... por favor, vai embora... me deixa em paz! - implorei, balbuciando. E ela não respondeu, simplesmente colocou as duas mãos na minha cabeça.

- Feche os olhos - foi o que ouvi, e não consegui deixar de obedecer.

- Agora, veja o que eu vi, esvazie sua mente de qualquer dúvida, medo ou superstição, eleve sua consciência - falou ela, enquanto eu não conseguia me mexer, resistir ou falar - Veja o que eu vi... torne-se Eu... veja o que eu vi... torne-se Eu.

E em seguida pude ver... e o que vi era... inacreditável... era como um filme, não, dezenas de filmes, milhares de imagens simultâneas dentro da minha cabeça. Não era possível discernir ou entender nada... era agoniante, mas a voz dela continuava lá...

- Eleve sua consciência. Concentre-se. Olhe para uma imagem de cada vez... torne-se Eu.

E as imagens foram se organizando, entrando em ordem, virando um filme só, um grande longa metragem... onde além das imagens, eu podia, não sei como, entender as palavras e os contextos...

Eu era ela... e estava no templo de Amon-rá sendo venerada, ouvindo o Faraó, o homem mais poderoso da época, me chamando de onipotente... beijando meus pés... eu o desprezava pela forma que tratava seu povo e meus iguais concordavam... e eles eram chamados de Osíris, Anubis, Hórus, Mut, Seth, Thoth... estou vendo as pirâmides sendo construídas, a esfinge, o ritual de mumificação... os hieróglifos sendo criados... até que meu igual, o chamado Anubis... ele... então acabou...

Um flash e eu era ela... no templo de Ártemis sendo venerada como a bela Afrodite, assistindo inúmeras orgias que duravam dias, com centenas de pessoas... tudo para me agradar... e eu sentia cada toque, cada sensação... eu apreciava os Gregos, inteligentes, racionais e ao mesmo tempo, hedonistas... meus iguais aprovavam... eles eram chamados de Zeus, Hera, Apolo, Hades, Hermes, Baco, Poseidon... tudo ia bem até que meu igual... o que recebeu o nome de Ares... ele... então acabou...

Um flash e eu era ela... sentada em um trono de carvalho ao lado de um igual... e os orgulhosos e fortes Vikings ajoelhados, nos venerando, como Odin e Freyja, o pai de todos e a mãe dos Vanires... pedindo conselhos, exibindo espólios de invasões e guerras... sempre os achei selvagens, incultos, mas ao mesmo tempo, orgulhosos... sensações desconhecidas e contraditórias... estava tudo bem até que meu igual, o nomeado de Loki... ele... e acabou...

Eu era ela... na Babilônia, Assíria, Pérsia, Roma, Irlanda, Escócia, Bretanha, Japão, China e muitos outros locais... sendo venerada por dezenas e dezenas de povos, Fenícios, Sumérios, Anglos, Saxões, Mongóis... cada povo, em cada época um nome... mas sempre fui Eu, a mãe, a fertilidade, o amor,  a colheita, o prazer... eu sempre prezei a vida e todas as suas nuances... sim, a vida.

E tudo ficava mais confuso a cada segundo... era muita informação, muita coisa para assimilar... já estava me esquecendo da maioria... mas novas imagens chegavam... os primeiros jogos no templo de Olimpia em sua homenagem, rituais em Stonehenge pedindo por uma boa colheita... as maravilhas que ela e seus iguais induziram os humanos a construir... o Colosso de Rhodes, a Grande Muralha, os Jardins Suspensos, o Farol de Alexandria... tantas coisas novas e maravilhosas... mas só foi bom por um tempo.

Sempre terminava mal... os humanos eram obcecados... tantas guerras, sacrifícios, mortes, traições... eu era ela... incomodada, inconformada... não devemos interferir, o quanto os ajudamos, os destruímos, eles nos querem, nos desejam... e alguns dos meus iguais passaram a gostar do sabor e sensação da agressividade, da guerra, da morte e do sofrimento... algo tinha que ser feito... mais informação, mais, mais... e terminou.

Não imagino quanto tempo passou, mas quando abri os olhos, estava deitada confortavelmente na cama e Brigit estava sorrindo e deitada ao meu lado, alisando minha cabeça com carinho.

- O que houve? - perguntei um pouco tonta.

- Creio que te mostrei demais mas você se esquecerá de quase tudo em breve - foi a resposta, ainda me alisando.

- Você... todas elas eram você... deusas antigas... você esteve em cada panteão, em cada era... você... presenciou tudo... por milhares de anos - falei, começando a alisar seu rosto.

- Sim, desde o começo de sua história eu assisti a ascensão e queda das civilizações de seu povo, mas não sou uma deusa... se ainda quiser saber, contarei quem sou de verdade.

- Sim, quero saber de tudo, mas não agora... agora preciso do seu toque e calor... por favor... eu não parei de pensar em você todo este tempo - respondi me aproximando mais.

- Nestes dias em que estive afastada, utilizei este tempo para me equilibrar e graças a isso, agora não há mais risco, agora sei o quanto de energia e sensação podemos trocar... será totalmente seguro, mas ainda assim, muito mais intenso do que com qualquer ser humano. Mas seja paciente, pois não me recordo de quando deitei com alguém do seu povo pela última vez - disse ela, me olhando nos olhos.

- Brigit, Afrodite, Isis... seja você quem for, eu quero você... seu corpo... eu preciso do seu corpo - conclui, a abraçando e começando a lhe beijar.

E ela retribuiu, seu corpo quente e macio estava ao meu lado, cada vez mais quente... e senti novamente aquele toque único e maravilhoso. E o curioso era que não estava mais assustada ou com medo, sentir o corpo dela me aquecendo. Aparentemente havia me feito esquecer a loucura disso tudo... mesmo ao despir e tocar aquele corpo macio, único de todas as formas, não lembrava nem por um segundo que eu... eu estava na cama ao lado de uma... deusa.


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