quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Minha Gatinha Lucy - Uma História em 7 Partes (Introdução / Parte I - Abrigo)

Prezados,

A história a seguir tem "uma história" curiosa... ela é curta, envolve pessoas comuns, obedece as leis da física e fala sobre algo que normalmente me fascina... o relacionamento humano é tão cheio de nuances inacreditáveis, que milhões de coisas podem ser ditas a respeito dele.

Mas a parte curiosa da história, é que foi escrevi como um presente para um casal de amigas... sete pequenas partes enviadas por Whats App, uma parte por dia... e hoje foi a 5°...

Bom, pelo menos elas estão amando a história da "Gatinha Lucy"... e como já está pronto mesmo, vamos publicar por aqui... foi interessante escrever em primeira pessoa, espero que gostem...

Abs a todos

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Minha Gatinha Lucy - Introdução

Há pouco mais de um ano, minha vida era tão normal quanto eu poderei querer... conquistara após muito esforço, um satisfatório trabalho em uma renomada clínica de Dermatologia próximo a avenida Paulista (eu merecia este reconhecimento após estudar tanto), estava morando em um gostoso e simples apartamento em Moema (sobra do meu péssimo casamento), me sentia na flor da idade com apenas trinta e sete anos, mantinha meus longos cabelos castanhos muito bem cuidados e só se havia passado alguns dias desde o término de um namoro chato e monótono.

Ás vezes me pergunto, como teria me comportado se soubesse o que me esperava naquela noite chuvosa de dezoito de abril... se teria ficado até tarde no trabalho da mesma forma que fiquei ou se teria saído mais cedo, para evitar os eventos que seriam desencadeados por minhas próprias e involuntárias ações.

Na realidade, meu único desejo naquela época era sossego e um pouco de tempo para decidir meus próximos passos... mas por minha única e exclusiva culpa (com um empurrão bem sacana do destino) isso tudo mudou naquela noite... a longo prazo meu sossego acabaria, minhas prioridades mudariam, minha sanidade seria questionada, meu coração seria abalado e minha vida mudaria de rumo por completo.

Mas olhando em retrospecto, não posso me culpar... quem poderia imaginar que algo tão simples e inocente como "abrigar uma gatinha", poderia se transformar em algo tão complexo, diferente e até... inacreditável?

Por outro lado, as vezes imagino que teria me comportado da mesma forma... pois apesar de tudo, posso afirmar com toda certeza que a história toda foi única e estimulante... as vezes o pior é esta dualidade de sentimentos e sensações, pois não encontro um motivo aceitável que justifique a minha passividade em relação a uma situação que claramente estava destinada ao fracasso... ou talvez não estivesse... ah, sei lá...

Após refletir muito, decidi escrever este pequeno relato em sete partes com tudo o que lembro daqueles dias, de forma que eu seja forçada a repensar todos os detalhes... isso vai me permitir obter uma melhor perspectiva de tudo que perdi e ganhei, desde que a "Gatinha Lucy" entrou, literalmente e inesperadamente no meu caminho naquela distante noite chuvosa.


Minha Gatinha Lucy  - Parte I - Abrigo

Aquela quinta-feira, dezoito de abril, não parecia em nada diferente de qualquer outro dia, exceto que ao contrário da semana toda, o tempo fechou e uma forte chuva começou bem no meio da tarde.

Não me recordo com precisão se a vontade de ficar até mais tarde no trabalho foi desencadeada apenas pela chuva ou se a falta de motivação de voltar para meu tranquilo e solitário cantinho, também interferiu. Mas o que realmente importa é que ao invés de sair as 18:00 hs como sempre, saí depois das 21:00 hs, com a chuva mais forte do que nunca.

Meu trajeto era sempre o mesmo, pegava o metrô na estação Trianon- Masp até a Chácara Klabin, mudava de linha e seguia até a estação Eucaliptos, ao lado do Shopping Ibirapuera, onde após uma caminhada de cinco minutos, meu apartamento me aguardava.

E foi andando com pressa, e com o guarda-chuva aberto pela avenida Ibirapuera, que eu virei a esquerda e tentava não me molhar muito naquela noite, o que se provaria impossível considerando a quantidade de água que caía.

Cinco quadras depois, já estava quase correndo, quando virei a esquina de forma abrupta e dei de cara com ela. As minha única lembrança daquele instante foi uma forte trombada em alguém que estava parado quase na esquina... e isso acabou me desequilibrando e jogando esta pessoa em uma grande poça de água junto ao meio fio.

'Meu Deus, desculpa!' gritei, logo após me equilibrar, enquanto estendia a mão para ajudar a vítima de minha desatenção. E foi após olhar melhor, que vi uma mocinha que aparentava uns vinte e poucos anos, loira e de cabelos curtos, usando mini saia e blusinha preta, caída no asfalto, sem qualquer reação. 'Meu Deus! Será que ela bateu a cabeça?' foi meu primeiro pensamento, já ajoelhada enquanto tentava reanimar a garota.

'Moça, moça! Acorde por favor! Fala comigo!', eu pedia enquanto levantava a cabeça dela com cuidado, já não se importando mais com a chuva, que molhava nós duas de forma inclemente. Demorou quase um minuto para ela abrir os olhos e balbuciar 'O que... o que houve?', tendo como resposta um trêmulo 'Eu... eu... não te vi... desculpa... está doendo muito?'. A moça claramente estava confusa e suas palavras não fizeram muito sentido, o que me obrigou a tomar a primeira decisão precipitada de uma lista que ainda viria.

'Moça, eu sou médica e meu apartamento é ali na frente... vamos lá que eu seco suas roupas e dou uma olhada na sua cabeça' disse, sem obter uma resposta satisfatória ou entendível... de qualquer forma, meu movimento para ajudá-la a se levantar foi aceito e ela se apoiou no meu ombro, me seguindo até meu prédio. Não existia porteiro, então felizmente eu não precisava explicar nada, por isso apenas abri a porta que dava para a rua, subimos um lance de escadas e chegamos no meu cantinho, ambas ensopadas até os ossos.

Como não tinha muita escolha, eu a levei até o banheiro e a sentei na tampa do vaso, em seguida tirei minha calça e blusa rapidamente... apesar da calcinha e sutiã também estarem molhados, ficar com a roupa molhada e gelada colada ao corpo, era pedir por uma pneumonia. Logo após isso, olhei rapidamente a cabeça dela inteira e não achei qualquer lesão.

'Que sorte moça, não machucou sua cabeça... não entendi por que você desmaiou' disse, sem receber uma resposta direta. Ela ainda balbuciava coisas estranhas, mas parecia saber o que tinha acontecido. 'Olha, tira suas roupas e toma um banho quente... eu vou te dar um roupão enquanto coloco tudo isso na secadora... entendeu?' insisti, para finalmente ter uma resposta 'Tá...'.

Me senti muito aliviada após esta resposta, pois não gostaria de ter que chamar uma ambulância ou a polícia para explicar como a machuquei sem querer. E como ela estava claramente confusa, a ajudei a tirar toda a roupa e entrar no box, aproveitando para procurar lesões em seu corpo causadas pela queda, o que felizmente não haviam.

Depois de levar toda a roupa ensopada para a secadora, fui até meu quarto, peguei uma toalha, tirei minha lingerie, me enxuguei como pude e coloquei um roupão... em seguida, levei outra toalha e roupão para a moça no meu banheiro.

'Moça, aqui estão uma toalha e um roupão... você acha que consegue se enxugar e se vestir sozinha?' perguntei, entrando no banheiro. Um aceno com a cabeça foi a única resposta, por isso, coloquei tudo em cima do vaso e saí para aguarda-la na sala.

O banho dela demorou mais do que eu esperava, mas como não ouvi nenhuma queda, mesmo mantendo meu ouvido atento, não fui inconveniente a ponto de questionar o motivo da demora. E após uns vinte minutos, ela saiu de roupão, com o semblante abatido e os olhos distantes.

'Moça, desculpe o que eu fiz, juro que não te vi' disse, esperando uma aceitação do meu pedido de desculpas, algo que não aconteceu. Ela simplesmente caminhou até o sofá e se sentou sem falar nada, o que começou a me deixar preocupada, me obrigando a pegar minha bolsa com instrumentos para examina-la. Felizmente minha primeira tentativa, que foi medir sua pressão, me indicou o motivo de seu abatimento.

'Moça, sua pressão está em 9x6... você comeu algo nas últimas horas?' perguntei, torcendo pela resposta ser negativa, o que explicaria tudo. 'Não', foi a única palavra articulada. 'Então, você está com hipoglicemia... aliada ao susto e a queda, foram o motivo do desmaio... você precisa comer alguma coisa, peraí' falei, indo correndo para a cozinha, onde peguei uma das minhas intragáveis refeições congeladas, coloquei no microondas e após cinco minutos, retirei e levei pra ela.

'Come, que você vai melhorar', disse, entregando a marmitinha. 'Esqueci o garfo, que cabeça a minha', falei ao se levantar e voltar para cozinha no segundo seguinte... qual foi meu susto quando voltei e vi aquela delicada e frágil mocinha, com a cara enfiada dentro da marmita, engolindo de forma selvagem o conteúdo, mal tendo tempo de mastigar. E após alguns segundos, ela levantou a cabeça e com os olhos brilhando e um grande sorriso, perguntou 'Tem mais?'.

Eu tentei, juro que tentei não demonstrar minha surpresa para não deixá-la constrangida... e com um sorriso amarelo e forçado, respondi 'Claro, só te dei este pouquinho para ver se você gostava... vou pegar uma porção maior'. O grande sorriso dela seguido de um 'Obrigada', cortou meu coração, apesar de eu tentar não demonstrar isso também.

Após voltar para a cozinha, coloquei mais três porções no microondas e liguei... em seguida, discretamente fui até a secadora, olhar com mais atenção as roupas daquela moça. Não havia carteira, bolsa ou chaves com ela, mas pelas etiquetas de cada peça, eu confirmei o que a aparência, o cabelo e os brincos me indicaram...  aquelas eram roupas caras e de marca... essa garota tinha um alto padrão de vida, mas surpreendentemente, estava comendo aquela porcaria descongelada igual a uma mendiga esfomeada.

Tentei não pensar nisso quando retornei para a cozinha, então peguei as três marmitinhas e despejei em um prato, que levei com garfo desta vez. E sinceramente, esperava que ela o usasse para comer, o que felizmente aconteceu, apesar de ser com uma avidez e velocidade incompatíveis com o sabor e qualidade daquela coisa que servi.

Preferi não interrompê-la, mas ao final de sua salutar refeição, ela me devolveu o prato com um profundo e sincero suspiro de satisfação. 'Tudo bem, moça?' perguntei incrédula, para ouvir um 'Agora sim... eu estava com muita fome'. E foi no instante seguinte que o apelido, aquele apelido que me perseguiria por tanto tempo, nasceu. Ela limpou a boca com a parte de cima da mão direita e ao notar um pouco de molho um pouco antes do dedão, começou a lambê-lo delicadamente.

Eu soltei uma risadinha bem espontânea, o que fez ela olhar para mim desconfiada. 'Desculpa, é que lambendo a mão desse jeito, você pareceu uma gatinha que eu tinha e fazia isso após comer... achei tão bonitinho...' disse, sem nem imaginar tudo que esta frase desencadearia no futuro. Ela não respondeu, então eu não sabia se a tinha ofendido... mas eu não pensei muito nisso, pois no instante seguinte, ela se encostou no sofá e se espreguiçou demoradamente.

Como que voltando a realidade, peguei novamente minha mala e fui medir seus sinais vitais. 'Temperatura normal, pulmão limpo, pressão 11x9, ótimo... deixa eu ver sua cabeça melhor... nada. Dá seu pulso...' pedi. Em seguida segurei o braço para medir a pulsação ao mesmo tempo em que vi alguns calos bem estranhos em sua mão. 'Que calos esquisitos, você trabalha com o quê?' perguntei com uma simples curiosidade. 'Com nada importante' foi a resposta, enquanto ela tirava a mão e olhava com desconfiança de novo.

Percebi que havia sido invasiva e tentei mudar de assunto. 'Bom, você se lembra do que aconteceu?', 'Não, lembro de estar parada e depois você dizendo que era médica e que iria me ajudar' foi a resposta. 'Sim, eu não te vi e batemos porque eu corria da chuva... aí você caiu e desmaiou, e eu te trouxe aqui em casa para te examinar e secar suas roupas', 'Obrigada, doutora' foi a resposta, juntamente com um bocejo. 'Não foi nada', disse com um sorriso, e concluí enquanto saía: 'Vou ver como estão suas roupas'.

Após alguns minutos, confirmei que suas roupas estavam secas, então as dobrei, e levei alegremente para a minha convidada. E com uma grande surpresa, vi quando cheguei na sala, que ela estava encolhida no sofá, dormindo despreocupadamente.

Aquilo era inacreditável, como ela podia relaxar a ponto de dormir na casa de uma estranha? Eu parecia tão confiável assim ou ela que era inconsequente? De qualquer forma, por algum motivo misterioso, não consegui acordá-la, então deixei as roupas dobradas no outro sofá, fui até meu quarto, peguei uma coberta, voltei e a cobri, deixando-a protegida e aquecida. O irônico era que este comportamento também era igual ao da minha gatinha, que logo após comer, dormia... e sem nem entender direito o porque, tomei minha segunda decisão precipitada, abrigando na minha casa, naquela noite, uma moça jovem, bonita, desconhecida, aparentemente educada e bem de vida, mas ao mesmo tempo, muito faminta.

Hoje percebo que o simples fato de eu não tê-la machucado, já havia me deixado aliviada o suficiente por aquela noite... ela dormiria bem e amanhã cedo, eu me desculparia devidamente. E logo após tomar um banho e um copo de leite, era minha vez de ir pra cama, o que não me impediu de dar uma última olhada na minha hóspede, que continuava ressonando tranquilamente.

'Durma bem, gatinha' foi meu último comentário em um sussurro, no momento em que apaguei a luz e segui com muito sono para o meu quarto.

5 comentários:

  1. Obrigado amigo Fabiano,

    Agradeço o prestígio e o tempo gasto para ler meus textos... eu realmente gosto de escrever como hobby...

    Engraçado, foi exatamente o que pensei ao escrever em primeira pessoa com uma narradora... tentar sair do conforto e me obrigar a tentar "sentir" por uma ótica diferente...

    Quanto ao comentário, não achei pretencioso... na realidade gosto de receber feedbacks, pois quem e faz, com certeza leu com atenção... e sendo que você escreve também, seu olho é mais afiado...

    Bom, espero que goste das outras seis partes... é uma história curta, mas estou tentando demonstrar relações e sentimentos... acho legal...

    Abs

    Daniel

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  2. que história legal, ela estiga a ler mais, muito massa

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  3. não ser muito detalhista também nos da uma visão melhor das reações internas do personagem que estando ali não repararia em coisas que vê todo dia, muito foda, parabéns.

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    1. Comentário perfeito, a idéia é exatamente essa... o foco principal são as reações, questionamentos e sensações da doutora...

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