Lembro-me que dormi muito pesado naquela noite de dezoito de abril, talvez o susto e a tensão pela possibilidade de ter machucado aquela garota, me deixaram bem cansada... mas mesmo assim, eu não esperava pelo que aconteceu em seguida. Devo ter acordado por volta das 09:00 hs e por nenhum motivo em especial, levantei rápido e fui até a sala para ver como estava a minha hóspede. E foi com uma sensação muito estranha de frustração, que descobri que ela não estava mais lá. A coberta e o roupão estavam dobrados perfeitamente bem, um em cima do outro... mas as roupas e ela haviam sumido... sem nem um tchau, sem olhar para trás, sem hesitação.
Fico com vergonha de admitir que minha primeira reação foi olhar a bolsa e conferir o celular, os cartões e outras coisas... e ao ter certeza que estava tudo absolutamente no mesmo local, paradoxalmente, minha frustração aumentou, pois se ela não havia me roubado e era honesta, por que teria ido embora? Talvez ela estivesse com raiva de mim, talvez não gostou que a comparei com uma gatinha... eu teria que conviver com esta dúvida, que não teria como ser respondida.
Aquele dia, sexta-feira, dezenove de abril, demorou para passar... eu acabei indo para o trabalho normalmente, fiquei calada a manhã toda, almocei e após voltar, Priscila, uma amiga do consultório não resistiu e me questionou. 'Cris, posso saber o que você tem? Parece que veio de um velório', disse ao entrar na minha sala, fechando a porta logo atrás. 'Nada, não tenho nada... por quê?' respondi, sem querer estender o assunto. 'Duvido, o que aconteceu esta noite?' insistiu ela, não me deixando muita escolha a não ser responder, obviamente omitindo a parte de que havia levado uma estranha que estava na rua para dormir na minha casa: 'Ah, essa noite... então... estava chovendo e eu trombei com uma... uma gata... joguei ela em uma poça de água sem querer... aí levei pra casa, sequei, dei comida e ela comeu muito... aí dormiu no meu sofá... e hoje de manhã...'.
Curiosamente eu hesitei a concluir a frase, pois me doeu lembrar disso... mas minha amiga não deixou por menos e completou 'Hoje de manhã ela tinha ido embora...'. 'Como sabe?', questionei surpresa. 'Gatos de rua adultos são assim, comem, dormem e vão... odeiam se sentir presos... você não sabe porque nunca pegou um gato adulto na rua' disse, me deixando realmente triste. 'Eu tinha uma gatinha quando era criança, mas minha mãe a pegou filhote, então não sei realmente' comentei, tentando encerrar o assunto. 'Mas se você a pegou ontem na rua, por que está tão triste?' perguntou ela, de forma certeira. 'Não sei, devo ser uma idiota' respondi, com toda a sinceridade.
Minha amiga me observava com um olhar estranho, mas após alguns segundos, ela falou uma coisa que me deixou estranhamente animada: 'Eu disse que eles vão, não disse que era pra sempre. Quando ela ficar com fome, com certeza vai voltar'. 'Você acha?' perguntei com um sorriso, 'Claro, pode ter certeza que ela vai aparecer na sua porta hoje mesmo' foi a resposta.
E o resto deste meu dia foi muito estranho, pois sem entender realmente o motivo, a possibilidade daquela moça voltar para comer algo na minha casa, me deixou animada. Vendo hoje, talvez se na minha vida houvessem mais amigos ou mesmo um namorado, minha cabeça não estaria ocupada com uma sensação ridícula e esdrúxula como estar feliz pela possibilidade de alimentar uma completa desconhecida.
Aquele dia demorado fatalmente terminou e eu segui para casa pelo mesmo itinerário, se lembrando da frase 'Quando ficar com fome, ela vai voltar', mas se esquecendo por alguns segundos, de que não se tratava de um gato, mas sim de uma pessoa. A noite avançava a cada minuto e após virar na esquina onde havia batido nela no dia anterior, uma sensação estranha preencheu meu peito... talvez eu imaginasse que ela estaria no mesmo local, o que se mostrou incorreto. Um tanto abatida, segui cabisbaixa em direção a meu apartamento e fui surpreendida, pois quando levantei a cabeça para atravessar a rua bem em frente a ele, lá estava aquela moça sentada na calçada.
Não acreditei e atravessei quase correndo, e quando cheguei bem na frente dela, deixei escapar um: 'Gatinha, digo, moça... tudo bem? Quero dizer, você foi embora... digo...'. Imagino o quão ridícula eu estava sendo, mas ela se levantou e com um grande sorriso, respondeu: 'Eu tinha um compromisso e não quis te acordar, Doutora... mas voltei aqui as 13:00 hs e estava esperando você voltar para te agradecer por tudo' . 'Não precisa agradecer, mas você está aqui sentada desde as 13:00 hs?' perguntei com incredulidade, 'Sim, eu tinha que te agradecer... agora eu já vou, tá?' respondeu ela, um pouco triste. 'Não, espera!' falei, lembrando da frase de minha amiga. 'Se você está aqui todo este tempo, não jantou... vamos entrar que você pode jantar comigo... eu sempre janto sozinha e é bom ter companhia'. 'Não vou te incomodar?' perguntou ela, levemente envergonhada. 'Claro que não, vamos lá ga..., digo, moça...' respondi, corando imediatamente.
Ela sorriu e me seguiu enquanto abria a porta que dava na rua... em seguida, entramos no meu cantinho. 'Fica a vontade, você já sabe onde está tudo' disse alegremente após fechar a porta. Ela não respondeu e se sentou novamente no mesmo sofá de ontem, como se esperasse pela minha próxima ordem.
'Vou tomar um banho rápido... quer uma toalha e um roupão igual ontem?' perguntei, imaginando que ela adoraria se banhar também. Com o aceno positivo da cabeça, fui até meu quarto e peguei as toalhas e roupas para nós duas e em seguida voltei ao banheiro. 'Vou tomar meu banho e deixo as coisas para você no banheiro, tudo bem? Aí enquanto você se lava, vou montando nosso jantar' disse, recebendo um novo aceno com a cabeça.
Meu banho foi realmente rápido, pois algo me impulsionava a voltar para perto daquela garota, que com certeza havia retornado para sua casa durante o dia, já que a roupa que ela usava era totalmente diferente da noite anterior. E após alguns minutos, me sequei com pressa e sai do banheiro para chamá-la: 'Moça, pode vir tomar seu banho'. Ela estava sentada no mesmo local em que a deixei, mas se levantou rápido e seguiu até o banheiro com um sorriso. E sem eu esperar, este foi o momento em que seu apelido foi oficialmente definido, quando ela parou bem na minha frente e disse: 'Doutora, me chama só de gatinha? Achei tão lindo'. Só consegui concordar com a cabeça, pois estava corada demais para falar qualquer coisa.
Preferi não pensar mais no assunto e rapidamente fui até a cozinha preparar nosso jantar, esquentando mais algumas porções de comida congelada e isso rendeu-me três novas preocupações... a primeira foi imaginar que teria que comprar coisa melhor para manter minha gatinha feliz e satisfeita... a segunda foi me perguntar por que estava preocupada em mantê-la feliz e satisfeita... e a terceira foi quando notei que havia acrescentando o pronome "minha" junto a "gatinha"... creio que minha cabeça decididamente não estava bem e a culpada, era uma moça cujo nome eu desconhecia e que no momento estava tomando banho em minha casa.
O banho dela novamente foi demorado, mas dessa vez quando saiu, ela não estava abatida, mas sim, radiante. E com a comida servida na mesa de jantar, eu a chamei com um sorriso 'O jantar está servido, gatinha'. E sorrindo de uma forma espontânea e gostosa, ela veio rapidamente até a mesa, sentou-se e começou a comer rápido e com uma fome bem aparente. Eu preferi não interrompê-la, mas naquela hora tudo ficou claro... tanto ontem como hoje, ela estava tendo sua primeira refeição do dia naquela hora.
Eu realmente comecei a me sentir muito mal com isso... como uma moça tão bem vestida, educada, bonita, poderia estar passando fome? Isso não fazia qualquer sentido, mas achei melhor não entrar em maiores detalhes naquela hora. Eu comi um pouco, mas curiosamente estava satisfeita apenas em ver ela se alimentar com tanto gosto. E ao final, ela olhou para mim com um jeito que parecia bem emocionada e disse: 'Obrigada, Doutora'.
O tom que ela usou bateu fundo no meu peito, mas preferi disfarçar meu sentimento: 'De nada, gatinha... fico feliz que você gostou'. 'Agora eu preciso me trocar de novo e ir embora, obrigada mesmo' ela disse, com uma ponta de tristeza. E aí veio a minha terceira decisão precipitada neste caso, com a frase: 'Não, pode dormir no sofá se quiser... para que sair a noite, fique a vontade'. O olhar feliz dela e o sorriso que se seguiu me fez engolir seco, quando ela perguntou: 'Não vou te incomodar?'. 'Claro que não, o sofá é todo seu' respondi, para no momento seguinte, ver ela se levantar alegremente e ir deitar no mesmo cantinho que tinha dormido na noite anterior.
Mas neste momento, algo me incomodou profundamente... na realidade, era a lembrança de acordar e não encontrá-la mais deitada no sofá. Era melhor deixar isso claro para evitar uma nova frustração... e com este pensamento andei até o sofá, me ajoelhei bem na frente dela e perguntei: ‘Você vai sair amanhã bem cedo de novo?', 'Sim, tenho compromisso' foi a resposta. 'Mas você vai voltar para jantar comigo? Vai voltar para dormir aqui?' perguntei, já que era a parte que realmente me interessava saber, 'Enquanto a Doutora não se incomodar, eu volto... se não quiser a minha volta, é só falar'.
'Deixa de ser boba, claro que pode voltar... volte todo dia para jantar e dormir aqui... vou adorar ter você por aqui' disse, com toda a sinceridade possível, 'Mas com uma condição' completei, enquanto se levantava e andava até minha bolsa. 'Qual?' perguntou ela, com um sorriso. Eu voltei rapidamente e tomei a quarta decisão precipitada (eu contei e me lembro de todas as decisões precipitadas) em relação a ela, quando disse: 'Você não deve ficar sem almoçar, pois faz mal pra saúde', ao mesmo tempo em que peguei a mão dela e coloquei uma nota de cem reais.
'Mas... Doutora... eu não posso...' tentava dizer ela gaguejando, mas que cortei rapidamente: 'Pode aceitar sim, é para você almoçar todo dia, e é um empréstimo, quando puder você me devolve... e quando acabar, me avisa que te dou mais... esta é a condição para você continuar vindo aqui, entendeu?'. Naquele momento, eu podia jurar que ela segurou uma lágrima em seus belos olhos, mas ao invés de chorar, ela me abraçou e disse: 'Combinado... vou anotar pra te devolver depois... obrigada, de coração'. 'De nada... gatinha' foi minha resposta, retribuindo o abraço.
E este dia terminaria logo em seguida para nós duas, pois o curto espaço de tempo que gastei recolhendo as coisas da mesa e levando para a cozinha, bastou para ela dormir... e ao retornar para a sala, já podia ouvir a minha gatinha (minha de novo) ressonando tranquilamente... E eu segui o ritual do dia anterior, quando peguei a coberta e rapidamente a deixei protegida e aquecida no sofá.
Mas dessa vez, quando olhei para ela, deitada e dormindo no sofá, meus pensamentos a respeito de toda esta situação foram um pouco diferentes em relação ao dia anterior, com perguntas como 'O que estou fazendo? O que está acontecendo comigo?'. E a impossibilidade de responder a estas questões, acabou me custando algumas horas de sono, que gastei pensando neste assunto. Ao mesmo tempo, estava muito feliz por saber que a gatinha estava alimentada, quentinha, protegida e voltaria no dia seguinte, no outro e no outro... e esta gostosa sensação com certeza estava ofuscando completamente o meu pensamento racional.
Valeu amigo... Hoje é dia do rato na Gibiteca... kkkk... Amanhã volta a gata...
ResponderExcluirtão massa quando a parte um, da para desenvolver muitas teorias mas por enquanto chuto ser algo envolvendo ela com a própia solidão e uma gata de verdade que ela vê como gente, a companhia torna isso real mas só pelo ponto de vista dela
ResponderExcluirObrigado amigo,
ExcluirMas teoria interessante... acompanhe...
Abs